Fundos imobiliários em transição: o novo desenho regulatório proposto pela CVM

em Jota, 13/novembro

Mudanças podem redesenhar equilíbrio entre flexibilidade, segurança jurídica e proteção ao investidor.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) abriu, em 30 de outubro, a Consulta Pública SDM 6/25, submetendo ao mercado uma proposta de reforma do Anexo III da RCVM 175/2022, que reúne as regras específicas aplicáveis aos fundos de investimento imobiliário.

Não se trata de mero ajuste pontual, mas sim de um relevante movimento regulatório: revisitar a arquitetura dos FII à luz da consolidação promovida pela própria RCVM 175/2022 e da experiência acumulada desde a revogação da ICVM nº 472/2008.

A minuta em debate concentra-se em sete temas, que vão da possibilidade de subordinação entre subclasses de cotas e da disciplina de ofertas públicas voluntárias e recompras, à revisão de quóruns assembleares, da figura do representante de cotistas e, sobretudo, da distribuição de atribuições entre administrador fiduciário e gestor.

A CVM declara buscar maior coerência com a parte geral da RCVM 175/2022, redução de custos de observância e modernização do regime, sem abrir mão – ao menos em sua própria formulação – da proteção ao investidor e da preservação das particularidades dos FII, em especial daqueles voltados ao público de varejo.

Para o mercado imobiliário e para a indústria de fundos, o desenrolar dessa audiência pública não é apenas um detalhe técnico a ser acompanhado por departamentos de compliance. As propostas tocam diretamente a forma como os FII estruturam suas carteiras, organizam sua governança e lidam com assembleias de cotistas.

Em outras palavras, podem redesenhar – em maior ou menor grau, a depender do texto final – o equilíbrio entre flexibilidade, segurança jurídica e proteção ao investidor. É à descrição desses vetores de mudança, tal como apresentados pela CVM, que se dedica este breve artigo.

Entre as propostas apresentadas, encontra-se uma que permite a criação de subclasses de cotas com diferentes níveis de subordinação, quando se tratar de classes que invistam exclusivamente em ativos de crédito. Trata-se de um movimento que aproxima os FII da estrutura típica dos fundos de direitos creditórios.

A medida parece ter por objetivo ampliar a flexibilidade de estruturação e acomodar investidores com distintos perfis de risco e retorno. De todo modo, ela mesmo reconhece que a inovação pode suscitar debates relevantes quanto a eventual arbitragem regulatória entre categorias de fundos.

A minuta também dedica atenção ao tratamento da oferta pública voluntária de aquisição de cotas (OPAC) e da recompra. No caso da OPAC, a proposta é admitir expressamente que a própria classe que emitiu as cotas, mediante previsão regulamentar, promova oferta para posterior cancelamento.

Já no tocante à recompra, a CVM propõe autorizar que o FII adquira cotas de sua emissão, desde que as cancele imediatamente e observe condições preestabelecidas, como preço inferior ao valor patrimonial, prazo máximo de doze meses e comunicação prévia ao mercado.

Outro eixo de alteração relevante diz respeito ao direito de reembolso do cotista dissidente em deliberações que impliquem reorganizações societárias do fundo. A CVM propõe que, nas classes de cotas que objetivem focar na aquisição de ativos ilíquidos, o regulamento possa prever hipóteses em que o reembolso não será devido.

A justificativa, segundo o edital, é compatibilizar a proteção do investidor com a viabilidade econômica do fundo, evitando que a exigência de liquidez imediata imponha a venda forçada de ativos ou comprometa a continuidade da estratégia de investimento.

Em matéria de governança, a minuta revisita o regime das assembleias gerais, propondo uma nova lógica de quóruns qualificados de deliberação que leva em conta o grau de pulverização da base de cotistas. O objetivo declarado é reduzir a incidência de deliberações frustradas, um problema recorrente na indústria e analisado em estudo recente conduzido pela Assessoria de Análise Econômica e Gestão de Riscos (ASA).

Pela proposta, fundos com até cem cotistas manteriam o quórum atual de cinquenta por cento das cotas emitidas; aqueles com até dez mil cotistas poderiam deliberar com vinte e cinco por cento; e, acima desse patamar, bastariam quinze por cento.

Ainda, a autarquia propõe facilitar a eleição de representantes de cotistas, reduzindo de três para um por cento o percentual mínimo necessário para inclusão do tema na pauta da assembleia. A intenção seria estimular maior engajamento dos investidores minoritários e criar mecanismos adicionais de accountability.

Além disso, a CVM consulta o mercado sobre a conveniência de permitir que o representante não seja necessariamente cotista, o que ampliaria o universo de pessoas aptas a exercer essa função, desde que preenchidos os requisitos de independência e qualificação técnica.

Talvez a modificação de maior alcance prático seja a redistribuição de funções entre administrador fiduciário e gestor de recursos. A minuta propõe transferir ao gestor parte das responsabilidades historicamente atribuídas ao administrador, especialmente aquelas relacionadas ao acompanhamento técnico dos empreendimentos, à contratação de prestadores de serviço e à administração operacional dos imóveis integrantes da carteira.

O administrador, por sua vez, mantém a propriedade fiduciária dos bens, nos termos da Lei 8.668/1993, e permanece responsável pelos controles de conformidade.

A justificativa apresentada é a de que a divisão anterior, herdada de um contexto de menor sofisticação da indústria, já não reflete a realidade atual, em que o gestor assumiu papel central na formulação e execução da política de investimentos. Segundo a Autarquia, a atualização das atribuições busca alinhar o regime dos FII à lógica da parte geral da RCVM 175/2022, reconhecendo o gestor como agente principal da atividade de investimento e reforçando, ao mesmo tempo, a responsabilidade do administrador como guardião fiduciário.

O último eixo de proposta diz respeito ao regime informacional. A CVM propõe substituir os suplementos fixos da RCVM 175/2022 — que detalham os informes mensais, trimestrais e anuais — por um modelo mais dinâmico, em que a Superintendência competente possa ajustar o conteúdo das informações mediante ato próprio (observadas disposições gerais relacionada ao agente responsável e à periocidade, por exemplo).

Argumenta-se que a indústria de fundos imobiliários, por sua heterogeneidade e velocidade de expansão, demanda um formato regulatório igualmente ágil, capaz de acompanhar a evolução da prática de mercado. Ao mesmo tempo, a autarquia reconhece o risco de insegurança jurídica decorrente da flexibilização e afirma que, sempre que houver alteração material no conteúdo informacional, será conduzida uma avaliação quanto a eventual impacto regulatório e assegurado prazo de adaptação compatível.

A Consulta Pública SDM 6/25 representa, em última análise, a disposição da CVM em tentar modernizar a disciplina setorial dos FII, visando um quadro normativo mais coeso e principiológico, em que a ênfase recai sobre a transparência e sobre a responsabilização dos agentes.

Para o mercado, o resultado concreto dessas alterações dependerá não apenas do texto final aprovado, mas também da forma como administradores, gestores e investidores assimilarão o novo arranjo institucional. Em qualquer cenário, o debate instaurado pela CVM já cumpre papel relevante: o de convidar a indústria a refletir sobre o grau de maturidade que se espera de um setor que, nas últimas décadas, deixou de ser um nicho de investimento alternativo para se tornar um pilar do mercado de capitais brasileiro.

Até o encerramento da consulta, caberá aos participantes do mercado — e à comunidade jurídica que o acompanha — contribuir para que a modernização pretendida se traduza em um regime equilibrado, capaz de sustentar o crescimento do setor sem abrir mão da confiança dos investidores que o financiam.


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