Lei 13.097: comprar imóvel ficou mais seguro?
em Valor Econômico, 23/maio
Essa revisão legislativa, aliada às disposições do Marco Legal das Garantias e ao entendimento consolidado pelo STJ, reflete o compromisso do legislador em simplificar e agilizar o processo de aquisição de imóveis.
É possível dizer que o Brasil é uma das maiores democracias diretas do mundo, visto que as leis, mesmo após passarem por todos os trâmites legislativos e terem a sanção presidencial, ainda precisam passar pelo crivo social de sua aceitação, o que gera um constante embate entre a legislação formal e sua aplicação prática. Essa dinâmica não usual deu origem à expressão popular “essa lei não pegou”.
No âmbito do mercado imobiliário, um exemplo marcante desse fenômeno é o princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel, estabelecido expressamente pela Lei Federal nº 13.097/2015 em seu artigo 54. Em essência, esse princípio determina que todos os direitos reais sobre um determinado imóvel devem ser registrados na matrícula desse imóvel no registro competente. Ou seja, em virtude desse princípio, todos os fatos e atos relevantes referente a um determinado imóvel deveriam constar na sua matrícula, principalmente informações relevantes sobre a sua propriedade e ônus.
Desse modo, na teoria, esse princípio ofereceria uma segurança jurídica significativa aos potenciais adquirentes de imóveis, pois, ao consultar a matrícula do imóvel desejado, eles poderiam verificar se há ônus ou gravames, adquirindo-o com tranquilidade. No entanto, na prática, diversas interpretações (errôneas ao nosso ver) de dispositivos legais, como o inciso IV do artigo 792 do Código do Processo Civil, que trata da existência de eventual ação que possa levar o devedor à insolvência, e o artigo 158 do Código Civil, que trata da fraude contra credores, mantiveram necessárias auditorias minuciosas por parte dos compradores. Mesmo com a dispensa de obtenção das certidões forenses ou de distribuidores judiciais trazida pela Lei Federal nº 14.382/2022 (primeira tentativa do legislador de aperfeiçoar o princípio), a boa-fé do adquirente continuou a ser questionada em juízo.
Diante desse cenário, notando que o princípio não “havia pegado”, o legislador se viu compelido a revisitar o tema. A recente aprovação da Lei Federal nº 14.825/2024, que inclui o novo inciso V ao artigo 54, representa um passo significativo nesse sentido. Agora, a ausência de averbação de constrições judiciais na matrícula do imóvel por decisão judicial torna o negócio jurídico imobiliário eficaz, conferindo maior segurança jurídica aos envolvidos.
A alteração vem com o objetivo de resguardar o terceiro de boa-fé, ou seja, a pessoa que adquire o imóvel sem o conhecimento de eventuais fatos que possam levar à ineficácia futura da transação, e estabelece limites claros à atuação do Estado nos negócios jurídicos realizados de boa-fé.
Essa alteração legislativa está em total consonância com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em particular a Súmula nº 375, que expressamente prevê que o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente, tendo sido citada expressamente na mencionada exposição de motivos. Além disso, o julgado do Tema Repetitivo 243 fortalece essa tese ao fixar que, inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento da demanda capaz de levar o alienante à insolvência.
Ainda, essa lei vem na esteira do Marco Legal das Garantias (Lei Federal nº 14.711/2023) que visa aprimorar as regras de garantias no ordenamento jurídico nacional, sendo crucial para esse aprimoramento, a segurança jurídica que bastaria ao credor obter a matrícula do imóvel para tomar conhecimento que esse bem poderia ser dado em garantia.
Como consta na justificativa do projeto do Marco Legal das Garantias, citando dados do Banco Central, o mercado imobiliário residencial urbano seria na ordem de 8 a 10 trilhões de reais, o que representa grande potencial de crescimento de operações de crédito com recursos livres para pessoas físicas. É essencial para o aproveitamento integral desse mercado, a agilidade do processo de auditoria e a confiança na segurança jurídica dos dados constantes na matrícula do imóvel, possibilitando que tais bens imóveis possam ser dados em garantia de operações de mútuos.
Essa revisão legislativa, aliada às disposições do Marco Legal das Garantias e ao entendimento consolidado pelo STJ, reflete o compromisso do legislador em simplificar e agilizar o processo de aquisição de imóveis ou outorga desses em garantia, garantindo uma maior transparência e confiabilidade ao mercado imobiliário. Espera-se que, com essas mudanças e aprimoramentos contínuos, o princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel finalmente ganhe a adesão necessária para contribuir significativamente para um ambiente mais transparente, justo e eficiente para todos.
Apesar dos avanços, a lei perdeu a oportunidade de ampliar a dispensa das certidões também para as certidões fiscais, obrigando, deste modo, que o Fisco igualmente buscasse levar eventuais restrições do proprietário à matrícula do imóvel, bem como a de exigir do poder público a averbação de eventuais restrições decorrentes de tombamento, desapropriações ou dívidas perante a União (SPU). Essas alterações fortaleceriam ainda mais o princípio da concentração dos atos na matrícula, eliminando possíveis brechas.
Embora essa legislação não seja completa, resta-nos a esperança de que esse princípio, agora reforçado por medidas legislativas mais claras e eficazes, finalmente “pegue” e cumpra seu papel como uma importante ferramenta de segurança jurídica no mercado imobiliário brasileiro.
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Alexis Borowik Rosa é sócio do i2a Advogados