Zona portuária finalmente ganha apelo para moradores no Rio de Janeiro
em Valor Econômico, 27/maio
Com novas construções, população da região deve crescer 90%, prevê prefeitura.
O cabeleireiro Luis Antonio dos Santos Carvalho, de 49 anos, sempre teve o “sonho da casa própria”, desde que começou a trabalhar profissionalmente, há 12 anos. A pesquisa para comprar um imóvel ficou mais séria a partir de 2018. Como o expediente diário é em Botafogo, na zona sul do Rio, buscou inicialmente opções perto do trabalho, com valores e alternativas de financiamento compatíveis com a capacidade de pagamento. A renda mensal de Carvalho se situa entre R$ 8 mil e R$ 10 mil. “Mas o que eu encontrava perto [do trabalho] era muito caro”, lembra, uma vez que Botafogo tem um dos metros quadrados mais caros da capital fluminense.
“E o que eu encontrava que era barato ficava longe do trabalho”, completa. Até que, em 2021, soube do lançamento de projetos residenciais na zona portuária do Rio, ao lado da região central da cidade e próximo da zona sul. As condições eram atraentes e o cabeleireiro comprou uma unidade em janeiro de 2022, com entrega prevista para janeiro de 2025. Mas que, segundo ele, pode ser antecipada para este ano.
A futura “casa própria” de Carvalho faz parte do projeto de revitalização da zona portuária da capital fluminense, cujo pontapé foi dado em 2009, quando surgiu a primeira legislação para reerguer a área economicamente. Desde então, com algumas “paradas” no meio do caminho (como em 2020, devido à pandemia), governo municipal, iniciativa privada e Caixa uniram forças para reviver a área. E consideram o ano de 2024 como um marco para a região.
Isso porque, 15 anos após a primeira lei em prol da revitalização, a localidade deve receber neste ano fluxo de moradores sem precedentes na história recente. A prefeitura contabiliza, até abril de 2024, lançamentos de 12 empreendimentos e de 9.129 apartamentos na zona portuária. As construções devem gerar acréscimo de 27 mil moradores na região, aumento de 90% na população da zona portuária, também segundo a prefeitura.
“O nosso primeiro empreendimento que foi o Rio Wonder [Rio Wonder Condomínio Praia Formosa, lançado na planta em 2021], de 1.240 unidades, vai ser entregue agora a partir de junho”, diz o vice-presidente da Cury Construtora, Leonardo Mesquita. A empresa foi uma das primeiras a investirem em projetos residenciais na área recentemente. “Com outro lançamento [residencial] que acabamos de fazer em abril, chegamos perto de 7.500 unidades lançadas ali [na zona portuária]”, completa.
A construtora, que atua no Rio de Janeiro e em São Paulo, espera encerrar o ano com valor geral de vendas (VGV) de R$ 5,5 bilhões este ano, contra cerca de R$ 4,5 bilhões no ano passado. O VGV é o valor calculado pela soma do valor potencial de venda de todas as unidades de um empreendimento. “O Rio representa em torno de 35% [das operações da empresa]”, diz. “A operação no Rio cresceu muito em função do porto [de projetos residenciais na zona portuária]”, acrescenta.
Um dos aspectos que atraíram a companhia para a região foi a preexistência de infraestrutura urbana, principalmente em transportes, diz o executivo. “Tem um VLT, é do lado da rodoviária; você está perto do metrô. É uma região na cidade onde até todo o cabeamento é subterrâneo.”
Para Mesquita, a revitalização da região no Rio não difere do que ocorreu com outras zonas portuárias em grandes metrópoles no mundo. “Normalmente, grandes cidades têm uma zona portuária que é focada em algo ‘premium’. Veja o que aconteceu com Puerto Madero [área restaurada do cais de Buenos Aires]: se pegou uma zona que não era muito usada e se colocaram restaurantes, um planejamento para aquela área. O Rio não tinha isso [planejamento para uso de sua zona portuária]”, diz.
O arquiteto e urbanista Miguel Pinto Guimarães concorda. E vai além: para ele, a zona portuária tem potencial para se tornar um “Puerto Madero” carioca. Mas adverte que transformações como essa são empreendimentos de longo prazo. “É preciso um investimento contínuo, um planejamento contínuo, ininterrupto”, completa ele, um dos arquitetos responsáveis pelo projeto vencedor para modernizar o Jardim de Alah, parque entre os bairros de Ipanema e Leblon. Para Guimarães, em duas décadas a região do porto poderia se tornar tão dinâmica quanto é, hoje, Puerto Madero.
É importante, porém, contar com o direcionamento do gestor público, salientou. O arquiteto lembrou que, no passado, terrenos mais baratos na região oeste da capital acabaram “puxando”, via especulação imobiliária, o crescimento do Rio por aquela região da cidade. Para Guimarães, é preciso valorizar, com oportunidades de novos empreendimentos, áreas dotadas de infraestrutura, de saneamento, de transporte - como é o caso da zona portuária carioca. “Nunca interessou ao gestor público planejar as cidades, porque eles não vão inaugurar em quatro anos, não vão inaugurar em oito anos. Então, nunca se investiu em urbanismo. O Rio de Janeiro [a prefeitura], diferentemente de muitos lugares, tem hoje um pensamento voltado para o urbanismo.”
O desenvolvimento urbano precisa, porém, ser acompanhado de estímulos para que a iniciativa privada também se interesse por investir em determinadas áreas. É o que pensa Thiago Dias, subsecretário-executivo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico do Rio. “O que houve [com a zona portuária] foi política pública bem desenhada, com estímulos corretos, de maneira republicana, de maneira técnica. E toda vez que você consegue desenhar esse tipo de modelo de incentivo, a iniciativa privada responde positivamente.”
“A região vem se consolidando com vocação residencial”
— Sérgio Henrique Bini
Dias acrescenta que o empreendimento é concatenado com o Reviver Centro, plano de recuperação urbanística, cultural, social e econômica da região central do Rio, que fica ao lado da zona portuária. “Acreditamos tanto nisso que expandimos a operação [de revitalização da zona portuária do Rio] até São Cristóvão.” O subsecretário se refere à Lei Complementar nº 267/2023, do Poder Executivo, sancionada em dezembro do ano passado, que trata dessa expansão.
No entendimento de Carlo Caiado (PSD), presidente da Câmara dos Vereadores do Rio, a parceria do Executivo com o Legislativo foi fundamental para decolar o projeto do “Porto Maravilha”, termo usado pela prefeitura do Rio para os planos de revitalização da zona portuária carioca.
Caiado salientou que o pontapé inicial, para a reurbanização da região, se deu por meio de uma Operação Urbana Consorciada (OUC), constituída pela prefeitura da cidade há 15 anos. De maneira sucinta, esse é um mecanismo que abre exceção, em uma localidade, na Lei de Uso e Ocupação do Solo (que vale para a cidade toda). É válida para requalificar uma área da cidade, a fim de atrair melhorias, via incentivos, para instalação de projetos e investimentos de iniciativa privada.
No caso da zona portuária, a OUC foi regulamentada por lei municipal em 2009 e abrangia 5 milhões de metros quadrados, incluindo parte dos bairros do Caju, Gamboa, Saúde, Santo Cristo e centro da cidade. E, na prática, a nova lei mencionada por Dias, de dezembro de 2023, que trata da expansão até o bairro de São Cristóvão, acrescentou 3,7 milhões de metros quadrados à região portuária delimitada pela OUC.
Para construir na zona portuária, é necessário adquirir os Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs). As Cepacs são uma espécie de título que dá direito ao proprietário de construir além dos limites determinados pelo código municipal de edificações. Para a região do porto, quase todas as Cepacs disponíveis foram compradas em 2011 pelo Fundo de Investimentos Imobiliários Porto Maravilha (FIIPM), administrado pela Caixa.
Com o dinheiro da venda dos Cepacs, o gestor municipal efetuou obras na área, de infraestrutura e de instrumentos urbanísticos de arte e lazer, como a derrubada do viaduto da Avenida Perimetral, em 2013; a construção do Museu do Amanhã e da Orla Conde, inaugurados em 2015.
Para construir no porto, o empreendedor tem que fazer a compra do terreno. Na hora de adquirir o potencial construtivo, a empresa precisa comprar o Cepac da Caixa. “A Caixa ‘comprou’ o potencial construtivo [da área], com essa legislação que foi aprovada, e estabeleceu um mercado para esse potencial construtivo”, diz Caiado.
O interesse da iniciativa privada por Cepacs do porto do Rio - e, na prática, de investir na região -, no entanto, demorou a decolar. Em maio de 2016, o Valor informou que menos de 17% dos Cepacs no fundo gerido pela Caixa haviam sido revendidos, segundo auditoria conduzida pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
“O Rio tem hoje um pensamento voltado para o urbanismo”
— Miguel Guimarães
Mas a maré de demanda fraca deu sinais de virada, nos anos seguintes. Entre 2017 e 2019, 22 empresas instalaram sedes em edifícios novos no porto, o que levou a um acréscimo de 12,5 mil pessoas a circular diariamente na região.
Mas, com o passar do tempo, ficou claro que o projeto não deslancharia se o perfil da região fosse majoritariamente comercial. “O projeto em si teve as suas dificuldades. Inicialmente a ideia era fazer um desenvolvimento, uma vocação mais comercial para a região”, admitiu Sérgio Henrique Oliveira Bini, vice-presidente de fundos de investimento da Caixa. O executivo explicou que, nos anos de 2020 e 2021, se iniciaram conversas com a prefeitura, o mercado, investidores e incorporadoras sobre possíveis caminhos para o desenvolvimento do porto.
Na prática, as conversações levaram a uma grande mudança, no entendimento dos players interessados no projeto, de qual seria o perfil da área, comentou. “Então, [depois das conversas] começou a se sair de uma vocação mais comercial para uma vocação mais residencial [no perfil dos empreendimentos]. E algumas incorporadoras que foram pioneiras acreditaram nisso”, comenta. Hoje, na área, a Caixa atua como financiador para interessados em comprar imóveis ou para construir na área; como investidora, via FGTS, do Fundo de Investimentos Imobiliários Porto Maravilha, e como administradora do FIIPM.
“A região vem se consolidando com vocação residencial. Temos em torno de 8 mil unidades lançadas. As primeiras começam a ser entregues neste ano” acrescenta o executivo da Caixa. “Se formos pensar que em cada uma delas [das 8 mil unidades] morem duas ou três pessoas, estamos falando de mais de 20 mil pessoas morando na região”, diz.
Sobre os novos residentes na área, Marcos Saceanu, presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário do Rio (Ademi-RJ), comenta que o ano de 2024 “é o momento de colher o fruto plantado”. Saceanu disse que os novos moradores vão passar a fazer propaganda da região: “Quem vai começar a falar bem da região é o morador. Isso traz um grau de confiança, uma credibilidade diferente do que só o governo falar, ou só uma associação falar, ou só um empreendedor falar, ou todos falarem junto.” Este “boca a boca” pode elevar demanda por residências na área e estimular a entrada de mais interessados em investir na região.
Claudio Hermolin, presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Rio de Janeiro, concorda. Na visão dele, a região portuária tem potencial para ganhar cerca de 25 mil unidades habitacionais (número que inclui os lançamentos já realizados), em horizonte de longo prazo. E ele lembra de outra vantagem que esse fluxo maior de residentes pode atrair, para a região. Com maior número de moradores na área, isso atrairá, organicamente, interesse em construções de pequenos e grandes comércios. “Na hora em que se começa a ter as pessoas morando, essas pessoas começam a demandar produtos e serviços na região”, lembra. “A nossa expectativa é que, ali, vire uma nova centralidade do Estado do Rio.”
No último dia 19 a prefeitura anunciou mais uma novidade para a área, o projeto Parque do Porto. A área será localizada atrás dos antigos armazéns da zona portuária e incluirá uma nova orla, formada por um conjunto de praças flutuantes, na baía de Guanabara. Ciclovias e um novo píer de cruzeiros para turistas estão inclusos no empreendimento.
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