Pri­va­ci­dade ame­a­çada

em O Globo, 16/março

Condomínios começam a discutir o uso de drones em suas dependências; invasão de intimidade é a maior preocupação.

Mora­dor de um imó­vel de três anda­res no con­do­mí­nio de casas Vil­lage do Maciço, em Var­gem Pequena, o apo­sen­tado Mar­lon Brito, de 62 anos, tem uma pis­cina na cober­tura e, como o espaço fica fora do campo de visão da vizi­nhança, cos­tuma apro­vei­tar no local, sem pre­o­cu­pa­ção, momen­tos com a mulher, a enge­nheira Andrea Lima, de 56. Num deles, no fim do ano pas­sado, o casal foi sur­pre­en­dido por um voo de drone sobre a área e se sen­tiu vio­lado. Ele, então, fez o alerta no grupo do resi­den­cial e recla­mou dire­ta­mente com o vizi­nho dono do equi­pa­mento. Con­fli­tos do gênero, prin­ci­pal­mente pela pre­o­cu­pa­ção com a inva­são de pri­va­ci­dade, têm se tor­nado comuns na região, sobre­tudo após a reper­cus­são de um caso em São Vicente, no lito­ral pau­lista, onde uma empre­sá­ria denun­ciou, em feve­reiro, ter sido fil­mada por um drone quando estava nua, em casa.

—A prin­cí­pio, esse mora­dor come­çou fil­mando a natu­reza do bairro e colo­cando as ima­gens no grupo. Nin­guém via mal­dade. Depois, come­çou a sobre­voar as casas, com a jus­ti­fi­ca­tiva de que estava em busca de focos de den­gue, com a auto­ri­za­ção do sín­dico, quando isso não é o cor­reto: se fosse o caso, deve­riam ir às resi­dên­cias fazer essa fis­ca­li­za­ção.

Até que fui sur­pre­en­dido por esse drone enquanto estava na pis­cina. Corri até o meu celu­lar, mirei para regis­trar e ele foi embora numa velo­ci­dade alta, sinal de que o dono sabe da ile­ga­li­dade que está come­tendo. Disse no grupo que não con­cordo com a prá­tica e fui até a casa do dono dizer o mesmo, numa boa. Não sobre a minha casa. Se acon­te­cer de novo, vou bater na porta dele com a polí­cia —diz Brito.

O apo­sen­tado des­con­fia das inten­ções do vizi­nho.

— É uma inva­são muito grande —observa. —Caso o drone dele tenha visto uma mulher pelada em alguma casa, como vamos ter garan­tia de que não fil­mou? Quan­tas famí­lias ele deve ter visto? O momento em que você está no seu lar é muito íntimo. Tenho para mim que ele guarda ima­gens muito par­ti­cu­la­res. No meu caso, detec­tei rápido, e o drone foi embora.

Mora­dor do con­do­mí­nio há dois anos, o ser­vi­dor público esta­dual Domingo Cun­di­nes, de 54 anos, conta já ter sido impor­tu­nado pela aero­nave ao menos três vezes.
Mora­dor do con­do­mí­nio há dois anos, o ser­vi­dor público esta­dual Domingo Cun­di­nes, de 54 anos, conta já ter sido impor­tu­nado pela aero­nave ao menos três vezes.

— Em todas as oca­si­ões, eu e minha mulher está­va­mos na pis­cina e nosso lazer foi inter­rom­pido pelo baru­lho ensur­de­ce­dor de um drone pla­nando logo acima da nossa casa —narra. —Essa situ­a­ção causa muita indig­na­ção nos mora­do­res, que têm os seus direi­tos à inti­mi­dade e à pri­va­ci­dade viola­dos. Alguns pen­sam até em recor­rer à Jus­tiça.

Para ope­rar dro­nes, o con­du­tor pre­cisa cadas­trar o equi­pa­mento na Agên­cia Naci­o­nal de Avi­a­ção Civil (Anac). O órgão esta­be­lece que a dis­tân­cia do apa­re­lho não poderá ser infe­rior a 30 metros hori­zon­tais de pes­soas não envol­vi­das e não anu­en­tes com a ope­ra­ção. E que devem ser obser­va­das outras regu­la­men­ta­ções, como as refe­ren­tes à invi­o­la­bi­li­dade da inti­mi­dade, da vida pri­vada, da honra e da ima­gem das pes­soas.

Espe­ci­a­lista em con­do­mí­nios, a advo­gada Fátima Gomes de Souza, tam­bém mora­dora do Vil­lage do Maciço, explica que os resi­den­ci­ais têm auto­no­mia para per­mi­tir ou não o uso de dro­nes e que o assunto deve ser deba­tido em assem­bleia:

—O sín­dico não pode dar auto­ri­za­ção para um mora­dor ope­rar drone, por­que isso envolve direi­tos alheios e indi­vi­du­ais, pro­te­gi­dos por lei. Aqui, o sín­dico não só disse no What­sApp que deu auto­ri­za­ção ao dono do drone como o defen­deu quando parte dos mora­do­res se colo­cou con­tra o uso. A prá­tica tem que ser apro­vada em assem­bleia, para usos espe­cí­fi­cos. Se é uma vis­to­ria, por exem­plo, no mínimo os mora­do­res devem ser avi­sa­dos pre­vi­a­mente sobre data e horá­rio. E, ainda que o uso seja deba­tido e apro­vado, é ques­ti­o­ná­vel, por­que versa sobre o par­ti­cu­lar da pes­soa. Se uma não con­cor­dar, pode pro­ces­sar.

A advo­gada ava­lia tam­bém que as regras atu­ais da Anac são gene­ra­lis­tas e, por isso, o tema ainda vai gerar muito debate:

— As deter­mi­na­ções é da dis­tân­cia mínima, mas não dizem que não se pode foto­gra­far, por exem­plo. As regras são mais para garan­tir a segu­rança, não para pro­te­ger a pri­va­ci­dade. Pre­ci­sa­mos de uma legis­la­ção pró­pria e mais robusta em rela­ção aos con­do­mí­nios, que estão se adap­tando à medida em que vão sur­gindo os pro­ble­mas.

O sín­dico do resi­den­cial, Fábio Bar­roso, nega ter auto­ri­zado o mora­dor a ope­rar o drone. Diz ainda que, por causa do con­flito, vai con­vo­car uma assem­bleia.

—Ele come­çou a fazer ron­das para iden­ti­fi­car pos­sí­veis focos de den­gue por conta pró­pria. Não pedi nada. Depois de algu­mas vis­to­rias, falou que encon­trou algu­mas pis­ci­nas escu­ras.

Autorização prévia passa a ser exigida

Tema se tornou recorrente em assembleias

Em janeiro, sobre­voos de drone tam­bém foram alvo de recla­ma­ção de mora­do­res no Rivi­era dei Fiori, na Barra, pre­o­cu­pa­dos tanto com aci­den­tes quanto com a pre­ser­va­ção da pri­va­ci­dade. De acordo com Már­cia Bata­lha, mem­bro do con­se­lho de sín­di­cos, a pes­soa res­pon­sá­vel pela ope­ra­ção, que não foi iden­ti­fi­cada, insis­tiu com a prá­tica ao longo de uma semana, até que a admi­nis­tra­ção come­çou a divul­gar nos gru­pos do con­do­mí­nio que o uso do equi­pa­mento é proi­bido den­tro do resi­den­cial. Um aviso com a deter­mi­na­ção tam­bém foi afi­xado nos murais do empre­en­di­mento.

— Dis­far­ça­da­mente, do nada, apa­re­cia um drone ron­dando por aqui. Inclu­sive, uma vez eu quase dei uma vas­sou­rada em um que estava voando perto. Isso come­çou a inco­mo­dar muito, até por­que não con­se­gui­mos des­co­brir de qual apar­ta­mento o apa­re­lho estava deco­lando, embora exis­tam algu­mas sus­pei­tas — conta Már­cia. — Aqui é um con­junto de sete tor­res: três de um lado e qua­tro de outro. E esse drone em ques­tão estava deco­lando de algum des­ses qua­tro pré­dios, ia para o meio dos demais, pas­sando perto das varan­das, e depois ia para a área comum, onde há a pis­cina. É uma situ­a­ção bem desa­gra­dá­vel, e todos fica­ram bem ner­vo­sos. Depois dos avi­sos, a pes­soa parou.

A Cipa Sín­dica, que admi­nis­tra cerca de 1.300 con­do­mí­nios no Rio, inclu­indo o Union Square, na Barra; o Ver­nis­sage, na Fre­gue­sia; e o Estre­las, em Curi­cica, come­çou a dis­pa­rar para todos os mora­do­res, na semana pas­sada, por meio de seus canais digi­tais, um comu­ni­cado com as regras sobre o uso de dro­nes nos resi­den­ci­ais, visando a segu­rança, pri­va­ci­dade e bem-estar, jus­ti­fica. Os inte­res­sa­dos em manu­sear o equi­pa­mento den­tro dos con­do­mí­nios pre­ci­sa­rão de auto­ri­za­ção pré­via da admi­nis­tra­ção, devendo for­ma­li­zar a soli­ci­ta­ção com ante­ce­dên­cia mínima de 48 horas, infor­mando data e horá­rio. A ope­ra­ção só será per­mi­tida das 9h às 17h e em áreas deter­mi­na­das no pro­cesso de auto­ri­za­ção. O regu­la­mento pro­íbe expres­sa­mente a cap­tura de ima­gens de áreas pri­va­ti­vas, como varan­das e jane­las.

A regu­la­men­ta­ção veio após dois casos envol­vendo dro­nes em seus con­do­mí­nios, ambos em dezem­bro pas­sado. Num deles, no Vila Cari­oca, na Tijuca, um mora­dor se sen­tiu lesado ao ver o apa­re­lho sobre­vo­ando a fachada sem saber ao certo o que o apa­re­lho estava regis­trando. Ele, então, for­ma­li­zou uma recla­ma­ção, ale­gando não se sen­tir con­for­tá­vel com os sobre­voos e pedindo pro­vi­dên­cias da admi­nis­tra­ção. No outro, no Union Square, a pró­pria Cipa iden­ti­fi­cou um drone sobre­vo­ando e, ante­ci­pando-se aos con­fli­tos, fez uma cam­pa­nha para infor­mar os mora­do­res sobre as regras.

— Essa regra de auto­ri­za­ção pré­via é nova e foi cri­ada a par­tir de con­fli­tos que acon­te­ce­ram. Esse con­trole é uma forma de saber­mos deta­lhes da ope­ra­ção e infor­ma­mos aos demais mora­do­res que, em deter­mi­nado perí­odo, haverá um drone sobre­vo­ando — pon­tua Bruno Gou­vea, coor­de­na­dor da Cipa Sín­dica. — Essa é uma situ­a­ção recente, e os con­do­mí­nios pre­ci­sam come­çar a se res­guar­dar.

Dire­tor da Admi­nis­tra­dora Naci­o­nal, que tem sob seu guarda-chuva resi­den­ci­ais como o Ven­ta­nas Nature Resort e o Villa do Golfe, ambos na Barra; e o Pon­tal Qua­lity Green, o Praia Nova Ser­nam­be­tiba e o Resi­den­ci­ais da Praia, no Recreio, Vic­tor Tulli diz que o assunto tem sur­gido com mais fre­quên­cia nas assem­bleias.

— É algo que come­çou a gerar mobi­li­za­ção no fim do ano pas­sado e vem numa cres­cente desde o iní­cio do ano, com as pes­soas pro­cu­rando saber mais a esse res­peito nas reu­ni­ões de con­do­mí­nio. Isso se deve muito ao fato de os dro­nes esta­rem se popu­la­ri­zando, tor­nando-se cada vez mais bara­tos e meno­res —ana­lisa. —Em geral, os con­do­mí­nios ainda não estão pre­pa­ra­dos, por­que é um tema que exige conhe­ci­mento das nor­mas, o que mui­tos sín­di­cos não têm, mas a ten­dên­cia é que fiquem cada vez mais capa­ci­ta­dos para os pro­ble­mas que pos­sam sur­gir rela­ci­o­na­dos ao uso de dro­nes.


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