Os efeitos disruptivos da reforma tributária para o setor imobiliário

em Estadão, 8/setembro

A primeira parte da Reforma Tributária, ligada aos tributos sobre consumo (ISS, ICMS, PIS, COFINS e IPI), está em curso desde o final de 2023, quando foi aprovada a Emenda Constitucional nº 32/23, na qual foram definidos os pilares da reestruturação do sistema tributário nacional em relação àqueles tributos.

No final do primeiro trimestre de 2024, tivemos a apresentação dos dois projetos de lei complementar (PLP 68/24 e PLP 108/24), necessários à regulamentação nacional das novas diretrizes constitucionais.

A tramitação de ambos se iniciou pela Câmara dos Deputados, que já aprovou o PLP 68/24 e o texto-base do PLP 108/24, ainda faltando toda a análise e tramitação pelo Senado Federal, mas algumas sinalizações claras e definições de rumo já são suficientes para tirarmos conclusões preliminares importantes, especialmente para o setor imobiliário.

Apesar de ainda faltarem algumas definições e certezas, pode-se afirmar com tranquilidade que a reforma dessa vez é realmente impactante, mudando de maneira substancial os alicerces da tributação de consumo, com os quais estávamos acostumados há décadas.

Aliás, a única virtude do atual sistema é exatamente essa: o costume, pois de resto é uma verdadeira tragédia técnica, com graves vícios e altamente regressivo. Mas é sempre desconfortável lidar com mudanças e com o novo, daí as resistências e desconfianças.

A proposição inicial era bastante moderna e inteligente, no entanto a tramitação trouxe ajustes preocupantes, especialmente em decorrência da manutenção de benesses setoriais e inclusão de protecionismos por mera ação de lobbies e sem qualquer coerência técnica ou sistêmica.

Ainda há alguma esperança de que o Senado aprimore o que resultou da tramitação na Câmara, mas pode acontecer exatamente o oposto, com o surgimento de novas traquitanas tributárias que dificultarão a operacionalidade e o equilíbrio do sistema.

A lógica básica do novo modelo, porém, parece estar definida e implicará em ajustes positivos para os setores de comércio e indústria, já que eliminará a selvagem coexistência de regras diferentes em cada Estado e tornará mais efetivo e direto o sistema de não-cumulatividade. Para as empresas de serviços em geral, que atuam em diversos locais, igualmente será um avanço pela unificação das regras, já que atualmente têm que conviver com uma regra diferente a cada município. São bons sinais de saída do hospício para essas empresas.

Para outros setores, todavia, as mudanças trarão consigo um efeito de maior complexidade em relação ao que atualmente estão acostumados, especialmente para as profissões regulamentadas e o setor imobiliário. Apesar de ser um sistema de baixa eficiência, cumulatividade total e opacidade de custo tributário real, é inegável que há uma atraente simplicidade na gestão e facilidade no cálculo dos tributos pagos por essas atividades.

Essa simplificação naturalmente facilita bastante a operação das empresas e torna prosaicos os atuais procedimentos de precificação, permitindo a competitividade ampla entre empresas com diferenças substanciais de porte e estrutura técnica, sem grandes barreiras de entrada.

A mudança do sistema tributário terá efeitos disruptivos para o setor imobiliário, pois a correta precificação de produtos e a verificação de viabilidade de investimentos e empreendimentos passará a exigir cuidados técnicos exponencialmente maiores nas áreas financeira, contábil e fiscal, refletindo, ainda, no setor de compras – uma vez que passará a ser inteiramente transparente a composição dos custos tributários, o que permitirá cálculos mais finos e gestão mais apurada e precisa de cada item que compõe o preço final.

A tendência, nos parece, é de ampliação das barreiras de entrada para as empresas que não se prepararem adequadamente para esse processo de mudança substancial na forma de apurar os custos de produção e de gerir as escolhas de formas de compra de materiais e serviços. No todo, os impactos no custo final das unidades imobiliárias poderão atingir a competitividade no mercado.

Atualmente, a diferença entre uma gestão contábil e fiscal qualificada e a tradicional “conta de padeiro” não traz impactos significativos em termos de resultados do empreendimento e carga tributária no produto final. Esse mundo está com seus dias contados e será fundamental aproveitar o período de transição entre os regimes para aprimoramento dos sistemas e mudança das formas de se calcular os preços e viabilidades dos empreendimentos.

Alguns breves exemplos tornam mais palpável a afirmação feita acima:

– O custo contábil do terreno atualmente não tem qualquer repercussão no cálculo da tributação de consumo e passará a ser um dos fatores essenciais de potencial redução da carga final de IBS e CBS, já que foi estabelecido o creditamento desse valor, sendo diretamente afetado pela forma de aquisição.

– A estrutura de contratação da construção em uma incorporação atualmente é analisada basicamente para fins de eficiência em relação às contribuições previdenciárias, passando a ser fundamental integrar as comparações de alternativas também com os novos tributos, observando os efeitos da tomada de créditos dos materiais e serviços, além do valor em si dos serviços.

– As cadeias produtivas de subcontratações ou segmentações de especialização, da mesma forma, ainda só são consideradas por conta da composição do preço final, mas passarão a ter relevância destacada na questão da tomada de créditos, provavelmente induzindo à plena formalização e nova onda de terceirizações.

Na atividade estritamente de construção, a nova sistemática irá, finalmente, premiar as empresas que tenham foco em desenvolvimento tecnológico nas técnicas construtivas, invertendo a situação existente no atual sistema.

Somente com uma qualificação adequada dos setores contábil e fiscal será possível aproveitar a mudança do sistema tributário para colher os efeitos benéficos e de modernização. Os efeitos negativos todos sofrerão, de sorte que ficará para trás quem não se preparar adequadamente para esse desafio, pois perderá uma oportunidade bastante especial de usar o único aspecto realmente positivo dessa reforma.


Ver online: Estadão


Alexandre Tadeu Navarro Pereira Gonçalves é advogado e sócio fundador da Bicalho Navarro Advogados