Saque-aniversário do FGTS ameaça recursos para imóveis, diz presidente da CBIC
em Estadão, 18/setembro
Renato de Sousa Correia acredita que mercado imobiliário é prejudicado por essa prática e elogia restrição do financiamento a imóveis usados; leia entrevista.
O presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Renato de Sousa Correia afirma que, embora o saque-aniversário do FGTS seja bem calculado para evitar riscos ao trabalhador e ao sistema financeiro, os empréstimos que antecipam esse saque do fundo por muitos anos desvirtuam a finalidade do fundo e podem impedir o consumidor de comprar imóveis.
Mesmo que reduza o endividamento por ter juros menores do que o cheque especial ou o cartão de crédito, a modalidade de empréstimo foge da função original do fundo, que é proteger o consumidor e ajudá-lo a comprar o primeiro imóvel. A queda de recursos da poupança também impacta no financiamento imobiliário do País, diz.
Correia acredita que o governo federal agiu corretamente ao limitar o financiamento de imóveis usados por meio do programa Minha Casa Minha Vida, o que levou à exigência de entrada no valor de 50%. “O FGTS tem de produzir imóvel novo por uma característica própria de retroalimentação do sistema. Ou seja, tem de gerar emprego para que eu possa retroalimentar o próprio FGTS. Nós temos de estar vigilantes à sustentabilidade do FGTS. O usado (imóvel) vinha com 9% (de participação) do valor e isso subiu para 30%”, diz.
O engenheiro civil Renato de Sousa Correia é presidente da CBIC Foto: Divulgação/CBIC/Diego Bresani
Leia os principais trechos da entrevista a seguir.
Qual é a avaliação do sr. em relação ao mercado imobiliário atualmente?
O mercado tem reagido bem, principalmente, no Minha Casa Minha Vida, depois das adaptações que foram feitas pelo governo em julho do ano passado. Os números de crescimento são robustos, tanto de lançamentos quanto de vendas. Em lançamentos, comparando semestre a semestre, houve alta de mais de 7% no mercado e um aumento em vendas de 17,9%. No Minha Casa Minha Vida, semestre a semestre, o crescimento foi de 86,7% nos lançamentos e 46% em vendas. O momento no mercado é de um crescimento efetivo.
Na pandemia, houve um desequilíbrio de oferta e demanda que elevou os custos de construção. Desta vez, a indústria tem conseguido acompanhar o crescimento do mercado?
No segundo semestre de 2020, os custos subiram muito, com alguns itens avançando mais de 100% em seis meses. A comparação que a gente tem na relatoria econômica mostra que os preços subiram, depois se mantiveram num patamar alto comparativamente com a inflação na casa de 50% acima do índice de inflação. Agora, essa diferença está diminuindo, mas ainda está 40% acima da inflação normal. (O custo da) mão de obra, que vinha num comportamento bom, começou a subir. Existe um ponto de atenção porque nós estamos com muitos empregos. com praticamente 3 milhões de empregos com carteira assinada no setor, sendo que o nosso recorde histórico é de 3,1 milhões. Obviamente, isso em algumas cidades pode trazer alguma dificuldade adicional.
Esse é o maior desafio do setor hoje?
A mão de obra é um deles. O outro é a reforma tributária e como vamos nos adaptar a ela ao longo dos anos. O financiamento é outro. A continuidade da oferta de financiamento para mercado imobiliário e infraestrutura precisa muito de investimento. Então, os grandes desafios estão aí: mão de obra, reforma tributária, uma nova era de competitividade e financiamento para fazer frente às necessidades da sociedade brasileira.
Em relação à mão de obra, isso ocorre porque o setor de construção está aquecido no Brasil como um todo, e não mais concentrado apenas nas grandes cidades?
O Plano Diretor de São Paulo dobrou a oferta de imóveis em quantidade. Antes, eram entre 35 mil e 40 mil imóveis por ano. De uma hora para a outra, o número virou entre 75 mil e 80 mil. Por isso, é óbvia a necessidade de uma mão de obra significativa e São Paulo pode ter um pouco mais de dificuldade do que outros mercados que não tiveram essa oportunidade. No Brasil todo, há um bom grau de empregabilidade no setor.
O financiamento é uma questão preponderante para o crescimento do mercado imobiliário como um todo. A Caixa teme falta de recursos para o ano que vem. Como essa questão tem afetado o setor?
Nós temos bastante preocupação com fundos, mas a gente pode olhar essa situação de duas maneiras. De 2004 para cá, nos últimos 20 anos, todos os mecanismos de financiamento amadureceram demais, tanto de oferta quanto de gestão da Caixa, dos outros bancos, em termos também de digitalização, assinaturas de contrato eletrônicos. Quando você olha o FGTS, o ano de 2023 começou com um orçamento para cada R$ 70 milhões, terminou com R$ 100 milhões. Este ano nós começamos com R$ 117 bilhões e vamos terminar com quase R$ 140 bilhões. Dobramos de um ano para o outro, e houve uma mudança profunda em julho de 2023, com o teto do imóvel Minha Casa Minha Vida a R$ 350 mil no Brasil todo. Esse refinamento do mercado ajudou muito a aumentar os investimentos do FGTS no setor da habitação. Por outro lado, na poupança, com a alta dos juros, houve muita fuga de recursos. São bilhões que se perderam ali, indo para outros tipos de investimento ou para o mercado, diminuindo a capacidade de oferta desse crédito, tanto para a produção de imóveis, quanto para imóveis novos e usados. A Caixa, obviamente, é mais demandada que os outros bancos, seja pelas taxas ou pela própria cultura de buscar a instituição para comprar imóveis. Então, houve uma migração de imóvel usado que nos preocupou bastante ao longo dos anos em cima do FGTS e houve essa pressão sobre o SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo).
O mercado fala em alta de juros. Como isso pode afetar o financiamento?
Nos últimos dois meses, vimos uma recuperação da poupança, ou seja, bastou o juro baixar um pouquinho para a cultura de poupar do brasileiro voltar. Se nós não tivermos, esperamos que não tenha, aumento da taxa Selic, é possível que a poupança se mantenha capaz de injetar esses quase R$ 150 bilhões todo ano. Não é suficiente para a gente falar num grande combate ao déficit habitacional no Brasil, mas ele mantém a demanda sob controle. Estou falando isso de maneira genérica, porque quando lançou-se o Minha Casa Minha Vida, lá em 2008, o déficit habitacional no Brasil era de 6 bilhões de moradias e não houve aumento nominal. Hoje, ainda estamos falando entre 6 milhões e 7 milhões de déficit de habitações. A demanda tem sido suprida por conta dessas ferramentas e, além do mais, nós tivemos a criação das LCIs e dos CRIs, que aumentaram em termos de captação.
Em relação a essa questão do FGTS, como os saques extraordinários ou empréstimos consignados antecipando o saldo do fundo afetam o mercado imobiliário?
Há cada vez mais um esforço pró-combate ao déficit habitacional. Na contramão disso, existem as medidas de saques extraordinários do FGTS que desviam da função original do FGTS. Qual é a função original do FGTS? Em primeiro lugar, salvaguardar o trabalhador no momento de necessidade da perda do emprego, de uma calamidade pública. Quando somamos toda a massa de trabalhadores, é possível aplicar o saldo do FGTS em habitação de interesse social, mobilidade e saneamento, que são as carências do Brasil. O FGTS é uma jabuticaba de ouro do Brasil. O saque-aniversário chegou para trazer dinheiro para o bolso do trabalhador com a antecipação. Por si só, ele é bem calculado. Quando essa regra foi criada, surgiu uma oportunidade aos bancos de fazerem antecipação de cinco ou até 30 anos do saque-aniversário, cobrando uma taxa de juros que é, para o trabalhador, aparentemente baixa, na casa de 20% ao ano. Isso é baixo comparado com a taxa do cartão de crédito ou com o cheque especial.
Qual é o risco desse tipo de empréstimo?
Nas simulações que nós fizemos, em cinco anos, o trabalhador fica só com a metade do recurso, e o banco fica com a outra metade. Se for uma antecipação de 11 anos, o trabalhador fica com 25%. Então, há uma operação de prejuízo ao trabalhador, de forma absurda, já no saque, porque ele está retirando o fundo de segurança dele, o fundo de garantia, para colocar em algo que ele não vai ter de volta, ele perde o dinheiro para o banco e ainda se prejudica, no caso de demissão, ou de calamidade. O consumidor ainda fica sem a condição de dar entrada no seu imóvel, que é a parte mais difícil para o trabalhador. É uma tragédia no sentido estrito da palavra.
Mas quanto significa isso?
Desde 2019 até agora, R$ 140 bilhões deixaram de ser aplicados em habitação. Isso significa o orçamento 2024 inteiro. Só para ter uma noção. Isso deixa milhares de famílias sem habitação.
O governo federal limitou o programa Minha Casa Minha Vida para imóveis usados. Na cidade de São Paulo, por exemplo, agora é preciso dar 50% de entrada para comprar um apartamento financiado. Como avalia a medida?
Desde que houve a mudança das regras em junho de 2023, aumentou-se a participação dos usados no FGTS e nós não somos contra o usado, só entendemos que o que tem de dar conta do usado é a caderneta de poupança. O FGTS tem de produzir imóvel novo por uma característica própria de retroalimentação do sistema. Ou seja, tem de gerar emprego para que eu possa retroalimentar o próprio FGTS. Nós temos de estar vigilantes à sustentabilidade do FGTS e o usado vinha com 9% do valor e isso subiu para 30%. Foi um aumento muito significativo e a gente reclamou bastante para que o governo pudesse baixar isso. Com essa redução, é possível que termine o ano ainda na casa de 20% de imóveis usados. Para o ano que vem, a estimativa é de que o usado ainda seja 15%, acima do que a gente entende como ideal, mas, pelo menos, é metade do que está sendo hoje.
Resolver o déficit habitacional seria uma forma de controlar a escalada de preços que a gente vê no mercado imobiliário nos últimos anos?
A questão da oferta e da demanda é sempre relevante. Se há uma demanda, o preço é pressionado para cima. Não vai ser apenas isso, porque os custos de produção também sobem. Agora, recentemente, estamos falando de reforma tributária. Se ela ficar no patamar que está lá no Congresso, com os 40% de desconto, haverá subida de preços na casa de 4% a 5%. Os fatores que decorrem e que elevam os preços nem sempre são apenas a oferta e a procura, mas ela é uma parcela significativa sim.
O mercado tem conseguido se adaptar a novas formas de acelerar a criação de moradias? A gente vê, por exemplo, a fabricação off-site, casas pré-moldadas feitas com aço e madeira. Esse tipo de inovação tem ajudado a resolver o déficit de moradias?
As tecnologias estão avançando no Brasil, mas o sistema tributário é um impeditivo para a industrialização da construção civil. Se você produz uma estrutura pré-moldada num lote e leva pro lote ao lado, via de regra você tem de pagar 17% de ICMS. É muito imposto. Quando a gente for passar para o sistema não cumulativo, aí sim ele (o sistema tributário) favorece a industrialização. Construções off-site com wood-frame e steel-frame são tecnologias altamente reconhecidas nos países desenvolvidos e funcionam bem aqui no País também. É óbvio que ainda tem de ultrapassar uma barreira cultural do cliente e para ele entender que isso tem o mesmo desempenho (que a construção tradicional). Em duas tragédias causadas pelas chuvas, em São Luís do Paraitinga e no Rio Grande do Sul, foram aplicadas algumas soluções pré-fabricadas para agilizar a construção de casas.
Já está claro qual será o impacto da reforma tributária para o setor de construção de imóveis?
Os países desenvolvidos aplicam essa metodologia do IVA, que é um imposto sobre valor agregado. O Brasil vai passar a aplicar e isso dará ao País condições de competição no mercado externo com a mesma modelagem tributária. Outra é não tributar a exportação. Nenhum país tributa exportação. Atualmente, o Brasil insere resíduos tributários incapazes de serem retirados dos produtos exportados, perdendo competitividade. Então, os próprios investimentos são tributados. No setor imobiliário e de construção, duas características que foram premissas para essa reforma são a neutralidade tributária, ou seja não há aumento de tributos nem diminuição de permanência da carga, e a complexidade. Ao nosso setor, da maneira que está, não está se aplicando nenhum redutor de alíquota. Um redutor de 40% aumenta a carga tributária do nosso setor. Então, a neutralidade não está garantida. Hoje, o setor tem um dos modelos mais simples de recolhimento de tributos. Se cai um real na conta, você paga um porcentual disso para o governo e seu tributo está dado. É muito fácil calcular. Agora, nós vamos ter de calcular unidade imobiliária por unidade imobiliária. Não é calcular o dinheiro que cai do empreendimento. É o dinheiro que cai daquela unidade imobiliária e eu tenho procedimento de cálculo para cada unidade. Vai complicar muito e aumentar os nossos custos. Mesmo assim, nós somos favoráveis a essa modelagem tributária, porque ela muda a estrutura de competição do País e, quem sabe, aumenta um pouco mais a industrialização, elevando também a qualidade do trabalho e a remuneração.
Então, os preços de imóveis devem subir por causa da reforma tributária?
Em se mantendo o desconto de 40% na alíquota, conforme o PL 68/2024, o impacto será um aumento de 51,7% da carga tributária e, inevitavelmente, haverá um rebatimento no preço dos imóveis. Calculamos que isso deve provocar uma alta de até 25% do valor da entrada dos imóveis e cerca de 5% do total da habitação, que é um impacto muito relevante para um país que tem um déficit 6,5% de habitações e que depende ainda de subsídios governamentais para que a população tenha acesso à moradia.
No geral, a reforma tributária vai ajudar a industrializar mais o País e a desenvolver o mercado imobiliário?
Um dos grandes dificultadores para a industrialização da construção civil no País é a reforma é a modelagem tributária atual. A mudança será favorável, sim, à construção civil para aumentar o índice de industrialização. Isso não quer dizer que haverá uma revolução onde os processos existentes desaparecerão. Mas (a reforma) aumentará o índice de participação da construção industrializada e facilitará, com o tempo, a produção de habitação e da própria infraestrutura no País.
Ver online: Estadão